O Anastácio de Morais, fidalgo e rico proprietário da vasta planura de Inchate, em Vila cova,
morreu; e logo seu sobrinho, D. Calatrão de Fiuzas, se apoderou da fortuna,
que, - se era considerável em pingues terras de pão e vinho, não o era menos em
jóias de valor e alqueires acogulados de cruzados. Um ricanho, sem parelha, na
corda de povos das redondezas. Mas ao passo que o tio disfrutava alguma
simpatia, ainda que sofresse do ruim pecado da avareza, o sobrinho não tinha
nenhuma e era, ainda, mais avaro e truculento, mais orgulhoso e detestado. Mal
o velho fechou os olhos, a primeira coisa que fez, D. Calatrão, foi chamar o
caseiro a contas.
- Mas eu não tenho contas a prestar. Sempre, pelos
Sam-miguéis, paguei as rendas do ano. Só devo a alma a Deus.
- Onde estão os recibos?
- Recibos? Nem eu desconfiava de D. Anastácio, nem ele de
mim: não há recibos.
- Pois arranja-te como puderes. Os documentos de
"pagas", têm de aparecer..
- Se os não possuo...
- Vai buscá-los, inda que seja ao Inferno! De contrário vais
p'rá rua e desgraço-te com justiça de Barcelos.
O pobre, mas honesto
Cachadinha, coçava a suíssa grisalha, não sabia que rumo dar à vida. Mais que
isso lhe doía a desconsideração de o julgarem desonesto. Como havia de arranjar
as "pagas", se não era de uso o patrão passá-las?
- Valha-me o bem-aventurado Santo António de Lisboa!
E como era de uso, correu à pequenina capela da quinta a
"atiçar" a lâmpada que, dia e noite, alumiava o simpático santinho
português; e rezar-lhe um padre-nosso ferveroso, em meio de muita aflição e
desgosto que o minava:
- Milagroso Sant'Antoninho! Livrai-me dos maus vizinhos de ao
pé da porta!
Mas logo no dia seguinte, o carrancudo D. Calatrão, voltou à
carga, mais ríspido e exigente:
- As "pagas"? Cad'ulos recibos?
- Não tenho.
- Vai buscá-los.
- Onde, D. Calatrãozinho?
- Onde quiseres... Vai ao inferno por eles, já te disse.
- Ao inferno...
E o pobre Cachadinha olhou para a mulher:
- Vou por esse mundo fora, ver se encontro quinta onde
possamos trabalhar honestamente, para nós, prós filhos e p'ra um patrão,
temente a Deus. Com este ladrapo do D. Calatrão, não se pode viver.
E foi. Logo na madrugada, noita fechada, ainda, depois de
espevitar a lâmpada, que alumiava a "santinho de Lisboa" e de lhe
rezar um padre-nosso e pedir protecçao para a mulher e para os filhos, - meteu
ao Monte de Creixomil e lá se foi...
Para onde? Nem ele sabia. Havia uma força oculta, que o puxava.
Deixou-se levar numa abstração dos sentidos, - a mulher e os filhos a encher-he
a alma atribulada, os olhos a fontejar lágrimas.
Mal se precatou estava ao Penedo da Redonda, no descampado,
onde o vento cabriolava e assobiava chulas estúrdias... sítio adregado para
medos do sobrenatural.
Como chegara tão depressa àqule ermo?
Uma rabanada de vento, de mau génio, sacudiu-o: agarrou o
chapéu, que lhe fugia, apresilhou os botões do gabão e olhou o céu. Pareceu-lhe
ver de repente as estrelinhas a apagarem-se todas à uma e a treva reinou na
caligem:
- Meu santinho de Lisboa: alumiai-me na jornada sem
destino!...
E logo demorado relâmpago, em labareda, esbraseou o céu e a
terra.
- Abrenúncio!
Então, à luz do fogo do céu, ele viu descer do Penedo da
Redonda, um vulto escuro, envolto em longo manto de estamenha, como hábito de
frade, que se dirigiu para ele e o saudou de amigo:
- Deus te salve bom homem!
E começou a caminhar a seu lado. Pareceu-lhe que conhecia
aquela cara, onde afloravam sorrisos de paz. Conhecia-a de onde? Espera! Pôs.se
a escogitar... A voz do desconhecido era suave como deveria ser a voz de um
santo:
- Sei o que te aflige. Podes precisar de mim: acompanho-te...
Como? Sabia da sua vida? Quem seria?
E seguiram a rota. Mas aos olhos obumbrados de Cachadinha,
toda aquela paisagem circundante, de variedades e de aspectos nunca vistos. Que
negros e fragosos montes eram aqueles? Que árvores de tão exóticos formatos,
que lembravam gigantescos tortulhos e coucilhos; e tremendais filamentos de
musgos grossos como varas de meda!... Nunca tal vira.
Santo Deus! Que torturoso caminho era aquele, tão cheio de
abrolhos e precipícios apavorantes? E aquela luz azulada, de tonalidades
sinistras, que os envolvia, como relâmpago sem fim, de onde vinha? Que
moribundo sol a produzia?
O admirável companheiro, apontou-lhe o negro portão que se
abria em frente, à entrada de tenebrosa bocarra:
- É ali!
- Alí o quê?
- Que encontrarás o recibo de que precisas...
- Quem o passa?
- D. Anastácio de Novais.
- D. Anastácio?
- D. Anastácio. É aqui a sua morada, pela eternidade sem fim.
O seu fado na vida marcou-lhe este destino.
O personagem da estamenha, parou à porta do pavoroso abismo e
bateu. As pancadas ecoaram tenebrosas e lúgrubes; e os ecos iam perder-se em
ressonâncias cavas, não se sabia onde... Andavam no ar gritos estertorosos...
Cachadinha tremia de pavor, ainda que se julgasse bem
protegido e escudado.
- Homem de Deus!
Serena! Nada receies.
- Onde estamos?
- No inferno.
- Ai que perdi a alma!
- Descansa: vens salvá-la... E podes salvar ainda a do teu
patrão.
O grande portão rangia os gonzos, com fragor; e um cérbero
horripilante, tricéfalo, de desumano aspecto, inquiriu os viandantes:
- Que pretendem?
- Falar a D. Anastácio de Novais
- Está a tomar banho, na lagoa de enxofre derretido.
O personagem da estamenha respondeu:
- Esperamos.
Depois voltou-se para Cachadinha, apavorado e preveniu:
- Não ponhas mão em nada! Tudo quanto vês, está dedado às
criaturas de Deus.
Momentos volvidos, o pobre vilacovano, viu, com espanto,
encaminhar-se para ele o patrão Anastácio, que, dias antes, vira enterrar numa
funda campa do Convento de Banho, com uma pedra, ao de cima, coberta de letras
negras. Todo ele escorria aguadilha de enxofre e breu e tremia as tremuras das
maleitas.
Um rictus de dor e atroz sofrimento o mortificava. Pode dizer
em voz estertorosa:
- Sei ao que vens, Cachadinha! O monstro do meu sobrinho
Calatrão, exige-te recibo de
"pagas". Pois vais
levar-lho porque nada ficaste a dever. Vou mandar passá-lo; e, para ir mais em
ordem, vai trasladá-lo o escrivão de Manhente, que há pouco cá chegou, e sabe
da arte...
Assim aconteceu. Momentos depois o escrivão de Manhente, na
caverna tabeliona dos abismos infernais, redigia o recibo, que provava a lisura
de contas do bom rendeiro Cachadinha.
- Aqui tens!
O estarrecido caseiro dos minifúndios de Inchate, ia estender
as mãos para receber o desejado documento, quando o misterioso personagem, que
vestia estamenha de frade, se interpôs e o recebeu em suas mãos, de uma
brancura diâfana, que rescendiam perfumes de incenso.
O dedicado interventor, que parecia não pousar os pés, teve
um sorriso suave para o companheiro de viagem e disse:
- Vamos.
Mas D. Anastácio regougou, numa voz de maldição e desespero:
- Vai! E diz à alma perdida de D. Calatrão que cá o espero!
Vês aquela cama de labaredas, ao lado da minha? É a dele: está-lhe reservada
pelo senhor deste abismo sem fim, para toda a eternidade... Cá o espero, cá
espero o maldito!...
Encetavam a viagem de regresso. Para trás ia tudo ficando em
trevas fuliginosas. E a exótica arborização transformava-se: mudavam de aspecto
os tortulhos gigantes e os coucilhos e musgos tremendais, que se debruçavam
sobre a torturosa vereda.
Começavam a defenir-se, em formas terrenas, os carvalhos, os
sobros e os pinheiros; e os matos e silvedos, giestais e torgueiras, - tão da
intimidade do Cachadinha.
E quando menos o esperava, viu-se, outra vez, ao Penedo da
Redonda, na base do monte de Creixomil, à ilharga de Inchate, junto dos seus.
Então o bom homem de estamenha, parou. Com branca mão de neve
, traçou uma cruz sobre o estranho documento e disse palavras de benção, com os
olhos fitos no Céu.
- Aqui tens o documento , provador da tua honestidade. Toma-o
em tuas mãos, que lhe sentirás o escaldejar. Teu amo exigiu que o fosses buscar
ao inferno: Lá fomos. Que o leia e medite. Há-de sentir a alma a arder. É um
aviso. Pode ainda salvar-se...
Cachadinha tomou em duas mãos o recibo, que lhe pareceu
vulgar, como qualquer outro documento, dos que na vida terrena, fazia o
famigerado escrivão de Manhente, e fitou o companheiro, que Deus
providencialmente pôs no seu caminho: A curiosidade imperava nele:
- Quem és, ó Sombra amiga?
Pelo semblante angélico do desconhecido, passou, como nuvem
branca, um confiado sorriso, o sorriso bom de um santo. Ele conhecia um sorriso
assim, da imagem de um altar...
- Quem sou!
Seus olhos de magia e santidade, ergueram-se até ao Céu, na
aurora que despontava, para dizer:
- Quem sou? Um patrício, um amigo que é grato à tua devoção:
fui António de Lisboa; sou agora António do Céu...
- António! Há! Meu bom Santo Antoninho!
Só então Cachadinha reparou nas imensas semelhanças com a
pequena imagem da Capelinha da quinta. Tal qual, tal qual...
- Ah! Meu rico benfeitor meu bom santo de Lisboa...
E ia rojar-se-lhe aos pés para lhos beijar. Mas como fumo que
se esvai e adelgaça, assim, lenta, suavemente, a sombra do bom franciscano se
foi diluindo e só uma mancha brandamente luminosa, a esfumar-se, aflorou de
encontro à negrura do Penedo da Redonda...
Cachadinha esfregava os olhos uma e muitas vezes. Parecia-lhe
que acordava de um pesadelo, que vinha de sonhar um sonho horrível e
maravilhoso ao mesmo tempo.
Como se encontrava ali, no monte maninho, longe dos seus,
àquela hora da madrugada? Santo Deus!
Tomou o caminho da várzea minifundia que fora de D. Anastácio
e era agora do soberbo D. Calatrão. Mal chegado foi, apareceu logo o importuno
e mal homurado senhorio, já com o meirinho à dextra para o despejo do folgo
vivo e apeirias, por falta de pagamento das rendas de muitos anos. E, mais
ainda - coisa grave, crime de mão cortada: - por ter roubado Santo António da
sua capela, ali à beira...
- Roubado?
- A imagem desapareceu esta noite.
- O Santo António?...
E Cachadinha correu para a capela, seguido de Calatrão e do
meirinho. Fazia-se luz no seu espírito. Mas Sant'António de Lisboa, lá estava
na sua peanha, sorridente, acolhedor... - tal qual o amável companheiro da
viagem nocturna...
Calatrão e o meirinho abriam os olhos num espanto compreensível.
Como estava ali o santo, se na madrugada, ao rezar matinas, pouco tempo antes,
ele não estava? Que milagre era este?
Mas o homem, duro e mal humorado, não deu braço a torcer:
- Bom: arrependeste-te e cá puseste... Vamos ao resto: O
recibo de «pagas»?
- «Pagas»? Não devo nada.
- Tens maneira de o provar: apresentar recibo de quitação,
passado pelo falecido...
E o mausinho de D. Calatrão, piscou o olho ao meirinho, rindo
à socapa. Cachadinha meteu mão ao bolso. A alegria brincava-lhe nos olhos; ia
triunfar a verdade e a justiça:
- Aqui o tem, D. Calatrão.
Sôfregamente, o soberbo, arrepanhou o documento. Sentiu logo
as mãos a escaldar, como se tição em brasa lhas queimasse. E as letras de fogo
arrelampavam-no, furavam-lhe os olhos: «Nada deve».
- Meu Deus! Que é isto?
Ia pousar o papel, mas o papel não se desprendia das mãos a
rechinarem. Fechava os olhos mas os olhos continuavam a ler as letras de fogo:
«Nada deve».
O sobrinho de D. Anastácio, quis saber onde Cachadinha
conseguira extraordinário recibo, que se lia na escuridão, sem auxílio de luz.
O arrependimento aproximava-se daquela vesga consciência. O caseiro,
contristado, informou:
- Onde o patrão m'o mandou procurar: no inferno!
E acrescentou o recado do tio:
- Vi a sua cama de labaredas: é à beira da de seu tio ... Lá
o espera D. Anastácio, que perdeu a alma...
D. Calatrão caíu inanimado nos braços do homem da justiça.
Quando veio a seu, pediu um bordão e uma sacola de pedinte e disse humilhado ao
caseiro, a voz transformada em choro:
- Adeus! Nada disto é meu. Tudo te pertence. Vou por esse
mundo penar os meus pecados e os de meu tio. Deus se compadeça da minha alma,
já que a dele se perdeu!
E desapareceu, para nunca mais ser visto.
Catarina Sá,6ºA,Nº1